Psic. Roseli M. Kühnrich de Oliveira 1
Li um texto muito interessante, de um professor de microbiologia zootécnica da USP2, que enfatiza o silêncio intelectual como condição vital para fazer ciência, e que me inspirou. Este pesquisador destaca como o silêncio tem sido a base de grandes conquistas científicas ao longo de séculos, e cita nomes de cientistas que detestavam a vida mundana e a agitação, preferindo a solidão de seus laboratórios. É de fato, um pouco estranho falar sobre o silêncio no mundo de hoje, tão saturado de sons e palavras. Muitos já acordam ao som de um despertador ou rádio-relógio, ao tomar café ficam sabendo pela televisão das notícias recentes, ou lêem no jornal as últimas calamidades. Poucos resistem a ligar o rádio ou CD do carro, até por que, se for possível manter as janelas fechadas, para não ouvir a buzinas, motores e barulho da cidade, melhor. Somos uma sociedade que consome informação de toda espécie, auditivas e visuais. “Out doors” expõem corpos perfeitos, retocados no computador, além de pizzas, carros e eletrodomésticos cada vez mais caros e descartáveis, gerando sonhos de consumo e ondas de descontentamento para quem está fora do jogo.
Resistimos ao silêncio, o celular veio para ficar! Já não reclamamos do volume das músicas e da TV e aos poucos, vamos elevando o tom da voz, dentro de casa. Algumas igrejas, outrora refúgios de paz e silêncio, retiram seus bancos para fazer seu “louvor aeróbico”, com um “som” numa altura que interfere no batimento cardíaco... sou mãe de adolescentes e sei o que estou falando! Mas, por favor, não me interpretem mal! Gosto de música, artes, de uma boa conversa com os amigos e amigas. Gosto de ler Adélia Prado e Fernando Pessoa, por que afinal, navegar é preciso... embora cada vez mais na Internet. Ver documentários, musicais, um filme “cult” no DVD, ok, a tecnologia está aí para isso mesmo.
Pessoas quietas, num canto, nos causam espanto e incômodo por serem diferentes, “partilhar e compartilhar” virou moda, como se nossos sentimentos e emoções devessem ser expostos, dissecados e observados por todos. Intimidades da realeza ou de miseráveis são discutidas em público, e programas de TV invasivos (tipo big brother) são o supra sumo da privacidade vendida e concedida em troca de algum dinheiro e quinze minutos de fama.
Mas, e o silêncio, o que tem à ver com isso? Neurologistas advertem que os níveis elevados de estresse impedem os neurônios de se recuperarem, o que significa dizer que pessoas estressadas tem perda de memória e dificuldade de concentração, entre muitos outros males. O Dr. Carlos Hernandez, psiquiatra argentino que foi por muitos anos diretor do Hospital Psiquiátrico de Possadas, declara que precisamos “purgar os sentidos” que são continuamente estimulados. Diz ele: “existe uma poluição de estímulos que causam danos ao poder discriminativo das terminações nervosas, uma gama de ‘exposição tóxica que cauteriza’ os órgãos sensoriais” 3 . Segundo este autor, certas condutas, como jejum, oração do amanhecer, silêncio, solidão, quietude, escuta da natureza e consciência dos ritmos e posturas corporais criam possibilidades de reorganização neurológica ou seja, disciplinas de espiritualidade podem colaborar para a saúde mental!
Entendo que é difícil para pessoas que tem a escuta como atribuição maior em seu labor, calar frente à tantos estímulos. Até que ponto podemos suportar o silêncio como benção e não como ameaça? Quando a pessoa à nossa frente se cala em tranqüila reflexão, é um momento sagrado: nada deve perturbá-lo. Ao psicólogo/a, ou ao pastor/a4 é dado o privilégio de estar presente: em quietude e sem agitação. Quero, entretanto, distinguir o “silêncio-benção” do silêncio repressivo ou rancoroso, não é disto que estamos falando hoje.
O “silêncio-benção” tem ligação com o aquietar-se. Crescemos escutando comando como “não fique ao parado, mexa-se, faça alguma coisa”. No entanto, a produção científica ou espiritual acontece no tempo do ócio5, e do silêncio ou seja, muitas descobertas e insights aconteceram e acontecem durante uma caminhada, um descanso embaixo de uma árvore, até vendo uma fruta cair. É preciso salientar também, que ócio não é lazer. Ter um lazer é muito bom, mas é diferente, pois o objetivo do lazer é distrair. Além disto, muito do lazer, hoje em dia, assemelha-se ao nosso trabalho: consumimos emoções que produzem adrenalina! Vivemos num mundo onde “tempo é dinheiro” e sugerir “parar para pensar” não soa bem. Não é raro encontrarmos pessoas não conseguiram relaxar nas férias ou que detestam o domingo, por não terem o que fazer! Já para os cristãos em geral, o domingo pouco lembra um dia de descanso: corre-se de um programa para o outro, intercalando eventos... Todos sabemos que estas atividades visam o crescimento da Igreja e não é meu objetivo polemizar mas propor o descanso, o “Shabatt”, como algo sagrado, possível de se vivenciar. Ou seja, se o seu Shabatt, não é viável no domingo, faça noutro dia qualquer, mas faça! Enfim, separar tempo para o descanso, o silêncio, lectio divina e oração, mais que sugestão, é um preceito divino6.
Além disto, os momentos de “repensar a vida”, o trabalho, caminhar sob as árvores e ouvir os pássaros, apreciar uma mostra de arte, ir a um concerto, podem ser excelentes antídotos para o estresse. Uma das estudiosa do estresse, Ana Maria Rossi 7, declara que algumas conseqüencias do estresse no organismo são: dores musculares, enxaqueca, insônia, problemas gastro-intestinais, aumento da ansiedade, angústia, irritação, falta de concentração, preocupação e uso abusivo de drogas e álcool.
A quietude até pode ser um bálsamo, mas onde encontrá-la? O silêncio implica em buscar um tempo e um lugar de quietude e solidão, ou somando as duas palavras, de “solitude”. O que desejo salientar é a necessidade do silêncio para quem tem por vocação “apascentar”, cuidar de outras pessoas.
A máxima da ordem beneditina “Ora et Labora” tem muito a nos ensinar neste sentido, até porque os centros de estudo teológico atuais, em nada se parecem com os antigos mosteiros, descritos como lugares de silêncio, meditação, oração e trabalho. Os mosteiros beneditinos preconizam ainda hoje, o ócio como recurso espiritual que se intercala com as outras atividades. Ou seja, não é ficar sem fazer nada, mas é intercalar períodos de descanso entre períodos de trabalho.
O sacerdÓCIO é exercer o ministério, à partir do sagrado e não somente das atividades, é o tempo do descanso na presença de Deus como aquele que busca um amigo com quem se gosta muito de estar. É um enamoramento, é muitas vezes apenas estar junto, em silêncio. Outras vezes, é falar, é rir, é cantar. Estes momentos de intimidade com Deus não se expõem, ou comentam, é como o pudor daqueles que se amam de verdade, certas coisas pertencem só aos dois. Este é o culto do coração. Mas é claro, existe o culto que acontece na comunhão das irmãs e dos irmãos que se reúnem para louvar ao Senhor e ouvir sua Palavra, ministrada pelo sacerdote, pastor, pastora ou algum dos irmãos. Porém, aparentemente, esquecemos o culto do coração. Preparamos pessoas para o pastorado que sabem muito de Bíblia, e pouco de Deus o que na concepção dos cristãos ortodoxos, significa “deixar descer a Palavra ao coração”. Henri Nouwen8 escreve que a reflexão teológica inclui as realidades cotidianas, destacando que “seminários e escolas de teologia precisam levar os estudantes à comunhão sempre crescente com Deus, à comunhão mútua e à comunhão com os semelhantes” e que estes centros de treinamento precisam envolver a pessoa como um todo, corpo, mente e coração. E continua: “se há uma crise na educação teológica, ela é, antes de mais nada, uma crise da palavra”. Sem desconsiderar a crítica intelectual e o debate, necessários, Nouwen relembra o fato de que embora os mosteiros já não sejam, nos dias atuais, os lugares mais comuns para a educação teológica, o silêncio continua indispensável... Pesquisando rapidamente currículos de escolas de teologia à procura de disciplinas que tratem da oração, “lectio divina”, silêncio ou meditação, o resultado surpreendente é de que há pouca preocupação com a espiritualidade daqueles que serão os pastores do rebanho. O preparo teológico resume-se ao preparo intelectual de uma função que é essencialmente pastoral. Ser “pastor” significa cumprir as quatro funções pastorais constantes no Antigo Testamento: que é ser guia (caminhar na frente das ovelhas), prover o sustento (alimentação: pastagens e água), defender e guardar (salvação, libertação), e estar ligado afetivamente ao rebanho (aliança)9. Há, portanto, tempo de trabalho e de descanso para os cuidadores de ovelhas. Mas o que vemos freqüentemente, são pastores e religiosos esgotados, atendendo inúmeros pedidos e demandas, a ponto de adoecer ou desistir.
O ativismo religioso é uma das causas do desgaste de religiosos, pois sem dúvida, a igreja é o melhor lugar para esconder-se de si mesmo sob uma aparência de espiritualidade. Estão tão ocupados com a obra do Senhor que não tem tempo para o Senhor da obra... O encontro com Deus, o descanso (Shabatt), em Sua presença, a prática da leitura orante da Palavra propiciam o aquietar do coração, e a própria reorganização interna (funcionando como uma decantação). Muitas pessoas dizem não ter tempo, mas o dia tem 24 horas para todos e já dizia Geraldo Vandré que quem sabe, faz a hora, não espera acontecer...
O silêncio pode ser uma benção para ouvidos, olhos, corpos e mentes cansadas, além disto, um pouco de solitude ajuda a rever conceitos, repensar decisões, planejar a vida. Estes princípios podem ser colocados em prática por todos os cuidadores, não somente os pastorais. Requer coragem, e ousadia, sem dúvida, para quebrar os paradigmas existentes. Mas não é esta a proposta do cristianismo?
1 Psicóloga clínica com especialização em terapia familiar, mestre em teologia, professora de seminários teológicos e da Pós-Graduação Latu-senso da EST de São Leopoldo, palestrante, docente na atualização teológica/pessoal de pastores/as, e obreiros/as. Vice-presidente –sul do CPPC, Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos e membro de EIRENE.
2 Rogério LACAZ-RUIZ. O silêncio intelectual como condição para fazer ciência, p 1-8, disponível na Internet: http://www.usp.br/fzea/zab/solêncio.htm.
3 Carlos HERNANDEZ. Uma viagem ao coração de si mesmo. p. 14.
4 Refiro-me neste texto a pastores e pastoras, sem distinção,o uso do termo pastor visa facilitar a leitura.
5 Domenico di Massa tem defendido a idéia do “ócio criativo”.
6 Paul STEVENS. Disciplinas para um coração faminto.
7Ana Maria ROSSI. Aprender a lidar com o estresse é uma lição diária. Carreira e Sucesso, n.231. Disponível na Internet em http://www.catho.com.br/jcs/inputer_view.phtml?id=6690&print=1 A dra. Rossi salienta que alimentação saudável, exercícios físicos regulares, relaxar, meditar e respirar corretamente estão entre as práticas que vem sendo indicadas como recursos terapêuticos no combate ao estresse.
8 Henri NOUWEN. O perfil do líder cristão no século XXI.